quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Batista ou Baptista? O "p" da questão

          Muita gente tem me perguntado o porquê do "p" mudo no sobrenome de Wilson Baptista. Afinal, não é "Batista", sem "p"? (Tá bom, ninguém me perguntou isso. Mas vou explicar mesmo assim. Existem questões que parecem não ter a menor importância e... não têm importância nenhuma mesmo... hehehe)
          Também conheci Wilson "despezado", isto é, enquanto "Batista". "Wilson Batista".
          Nos últimos anos, no entanto, em minha pesquisa, me deparei com pelo menos uma dezena de documentos assinados por ele, invariavelmente, como "Wilson Baptista".
          O mais antigo deles data da década de 30. Wilson dedica uma foto sua à Revista Deca, grafando seu sobrenome com o tal "p" mudo que partituras, rótulos de discos e jornais da época também exibiam. Alguém pode pensar: "Mas isso foi antes da Reforma Ortográfica que aboliu as consoantes mudas." (Tá bom, ninguém vai pensar isso. Se tiver alguém lendo essa postagem até aqui, já vai ser ótimo.)

Envergando um paletó e envergado de gomalina, Wilson Baptista (com "p" mudo) 
admira um disco com música sua, em foto dos anos 30 dedicada à revista Deca.

          É verdade, o Formulário Ortográfico de 1943, estabelecido pela Academia Brasileira de Letras, aboliu de nossa ortografia, de uma hora para outra, as consoantes mudas (que ficaram vagando por aí sem emprego e acabaram caindo no crime). Conclusão: o "p" de "Baptista" desapareceu de partituras, rótulos e jornais, e nosso amigo passou a ser, oficialmente, o "Wilson Batista" (despezado) que chegou até nós.
          O mestre do samba parece, no entanto, nunca ter aceitado a punga de seu "p" mudo pelo Formulário Ortográfico. Décadas depois, assinando documentos ou dedicatórias, "à paisana" ou como "artista", fazia questão de seu "p". Um dos documentos mais recentes que encontrei assinado por "Wilson Baptista", é um bilhete, escrito dois meses antes de sua morte para o amigo Almirante - vinte e cinco anos depois da tal reforma ortográfica.

Assinatura de Wilson em bilhete para Almirante

Capa do caderno em que Wilson começou a escrever suas memórias,
na década de 60. Dá-lhe "p" mudo!

          Em tempos de k.d. lang, Ke$ha, Will.I.am e outras bizarrices ortográficas e/ou artísticas (sem falar naquele cantor americano que virou um caractere inexistente nos teclados), não é por causa de um mísero "p" mudo que a gente vai deixar de fazer a vontade de Wilson. BAPTISTA.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Samba em Revista: Um segredo chamado Wilson Baptista


          Quem tem amigo não morre pagão!
          Alexandre Medeiros é um desses amigos que só trazem notícia boa. Super pesquisador, louco por carnaval e escola-de-samba, ele volta-e-meia me aparece com uns achados de pesquisa geniais sobre Wilson Baptista. Em passes de mágica, ele já fez chegar às minhas mãos, entre outros tesouros, partituras raras garimpadas em sebos, notícias de jornal sobre Wilson pescadas da internet de sites quentíssimos, e - inacreditável - um compacto de vinil contendo uma música não catalogada do mestre, adquirido por ele num sebo em Tóquio através de um amigo japa. Além de tirar coelhos como esses da cartola, Alexandre está sempre me pondo na fita de boas oportunidades. Por seu intermédio, publiquei o artigo "Um segredo chamado Wilson Baptista" na edição de fevereiro/março da revista "Samba em Revista", editada pelo Centro Cultural Cartola e coordenada por Nilcemar Nogueira.
          Graças a outro amigo, Rodrigo Dannemann, aprendi a usar o tal do dropbox para disponibilizar o artigo para vocês aqui no blog. Quem quiser dar uma olhada, é só baixar o pdf clicando no link abaixo.

          Baixar pdf do artigo "Um segredo chamado Wilson Baptista"

          Valeu Alexandre! Valeu Rodri! Com amigos assim eu morro abençoado!!!
          Obrigado também a Nilcemar Nogueira e ao Centro Cultural Cartola pelo espaço generoso que Wilson ganhou na "Samba em Revista"! Vida longa ao projeto!
          (Uma das grandes alegrias que essa publicação me deu foi o telefonema que recebi do Alfredinho do Bip-Bip, que leu a revista e fez questão de me ligar botando o artigo nas alturas. Abração, Alfredinho!)

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Rei Tantinho e Rei Chicão

Tantinho da Mangueira (que cantor!) e eu (felizete!)

          Há alguns anos, encontrei uma fita de rolo muito especial com gravações caseiras de Wilson Baptista cantando, batucando e compondo. Wilson possuía um gravador portátil - seu amigo inseparável na década de 1960 - e tinha por hábito apertar o "rec" e esquecer da vida. Seu processo de composição era repetir o "esboço" da música dezenas e dezenas de vezes, como um mantra, fazendo sucessivas modificações na melodia e na letra até chegar à forma final desejada. Um dos sambas que é lapidado pelo mestre ao longo da fita é "Rei Chicão", que achei uma beleza já na primeira ouvida. Épico, sombrio, moderno - é um samba com a pegada de Wilson e uma letra imensa (a exemplo de seu samba-de-breque ainda mais longo "Averiguações", lançado por Moreira da Silva).
          Quarenta anos depois de ser criado, "Rei Chicão" continuava inédito. Convidamos Paulinho da Viola para dar vida ao samba, ele que tanto fez pela obra de Wilson nos anos 1970. (Na crista da onda, Paulinho pôs no mercado gravações antológicas de "Chico Brito", "Meu mundo é hoje", "Nega Luzia" e "Mulato calado", e fez questão de dizer num programa de tv, em rede nacional, que Wilson Baptista era o maior sambista brasileiro de todos os tempos.) Problemas de agenda, no entanto, impediram Paulinho de participar da festa. É dos poucos artistas cuja ausência no disco eu lamento. Fica para a próxima.
          Mas há males que vêm pra bem, diz o "velho deitado" (hehehe). "Rei Chicão", voluntarioso, acabou achando seu avatar perfeito, seu tinha-de-ser: Devani Ferreira, o glorioso Tantinho da Mangueira!

Tantinho dá um confere na letra de "Rei Chicão"

          Exemplo vivo de que nos menores frascos estão os melhores perfumes, Tantinho (que estava inicialmente "escalado" para outra faixa do disco), derramou sua voz de metal no arranjo caprichado de Edu Neves - com filigranas de Moisés Alves no fluglelhorn -, e deu aquele toque soturno, pungente, que o samba pedia. O "Rei Chicão" renasceu naquele 22 de outubro de 2010, no estúdio da Biscoito Fino, com uma força tremenda, em versão definitiva. Tantinho tem a vivência do morro no sangue e na voz, não é mole, não! Quem conhece seus discos cantando Padeirinho e sambas de Mangueira sabe do que estou falando. Guenta coração! Valeu Tantinho! Somos seus fãs!

Pronto para o ataque. Passe livre. Nem precisou falar primeiro com o rei Chicão.

          Curiosidade: Encontrei uma versão manuscrita de "Rei Chicão" com apenas duas estrofes descrevendo figuras que deveriam "falar primeiro com rei Chicão". Optamos pela versão (mais rica) cantada por Wilson na fita. Só deixamos de fora as seguintes estrofes:

          Português pra vender cachaça
          Querosene pra lampião
          Tinha que falar primeiro
          Falar primeiro com o rei Chicão

          Se alguém quisesse alugar
          Sala ou quarto no barracão
          Tinha que falar primeiro
          Falar primeiro com o rei Chicão

sábado, 1 de outubro de 2011

Homenagem ao amigo PC de Andrade

          Na última terça-feira, dia de Cosme e Damião (e do lançamento do CD do Wilson Baptista no Carlos Gomes), fiquei sabendo pelo Alfredo Del-Penho do falecimento do grande PC, ocorrido naquela madrugada. As postagens seguintes aqui no blog seriam sobre Tantinho da Mangueira e sobre como o show no "Sete em Ponto" rolou bonito - mas resolvi furar a fila para falar dessa figura rara e querida, nosso Paulo César de Andrade.


PC, Cristina Buarque e eu. Talvez a única foto que eu tenha com ele. 
Acho que o show era do João Nogueira ou da Velha Guarda da Portela. 
Atrás da Cristina, Áurea Martins. No canto esquerdo, saindo de quadro, João Máximo. 
PC ficou com pena da moça das fotos e comprou duas, uma pra mim, outra pra Cris.

          Conheci PC no estúdio Cia dos Técnicos, em 1997, durante as gravações do disco "Chico Buarque de Mangueira". PC era responsável pela pesquisa e pelos textos do projeto, e eu andava por ali fazendo um registro em vídeo dos bastidores, a pedido do Hermínio Bello de Carvalho, que assinava a direção artística. Não sabia quem era o PC. Lembro que nos apresentamos um ao outro durante a gravina de "Piano na Mangueira". O glorioso Jamelão era o cantor da faixa e começou a implicar com a letra do samba. "Esse menino tem talento," - disse Jamelão, se referindo a Chico Buarque - "mas esse pedaço aqui não tá certo." E repetia a frase "já mândei subir o piano...", querendo dizer que a prosódia estava errada.
          PC, descobri na época, era dono de um super acervo musical, de uma língua ferina e de um coração imenso. Pesquisador mais talentoso, apaixonado e obsessivo tá pra nascer. Sabia tudo (com ênfase em samba e tango). Sua (estranha) mania era querer viver fora dos holofotes. Fazia tudo na surdina e para os amigos, de preferência sem ganhar nada em troca. Quem trabalha com música e memória no Rio de Janeiro e nunca recorreu ao PC não sabe o que perdeu. Com ele aprendi muitíssimo, principalmente a importância do rigor no trato com a informação que se publica.
          PC estava sempre atrás de uma gravação raríssima impossível ou produzindo (para os amigos) CDs caseiros com discografias completas de cantores e compositores. A coleção com toda Aracy de Almeida foi uma das primeiras produções dele. Impecável. A pedido de PC, tive a alegria de criar capas para os seus CDs com a obra completa de Mário Reis, Vassourinha e Luís Barbosa.
          Todo mundo que conviveu com PC tem uma história engraçada pra contar sobre ele. A minha aconteceu logo depois do "Chico Buarque de Mangueira". Um belo dia, PC, Cristina Buarque, minha irmã Renata, Claudinha Delgado - grande amiga - e eu cismamos de entrevistar Zé Ramos de Mangueira, um dos fundadores da Escola e compositor do levanta-defundo "Jequitibá do Samba".
          Seu Zé concordou em nos receber - acho que foi o Hermínio que fez a ponte - e fomos ao seu encontro numa manhã de 1997. Ficamos ali ao redor dele, na sala de sua casa no Cachambi, ouvindo (e gravando) suas histórias e seus sambas (na maioria inéditos). Num dos cantos da sala, D. Nicéia, sua esposa, praticamente vegetava, coitada, sentadinha num sofá. Tinha tido um derrame ou coisa parecida, vivia completamente alheia. Seu Zé se referia a ela com muito carinho, mas como se já não estivesse mais entre nós. Num dado momento, depois de interromper a entrevista mil vezes para fazer comentários sem fim, PC, irrequieto como sempre, cismou de ir ao banheiro. Levantou do sofá e, sem perceber, derrubou no chão uma almofada. Foi aí, sem mais nem menos, que um brado gutural e sinistro trovejou pela sala: "APANHA A ALMOFAAAAADA!" O susto foi geral. Pulamos das cadeiras. D. Nicéia devia amar aquela almofada, porque emergira de seu torpor apenas para gritar pela dita-cuja, num volume que ninguém a imaginava capaz. PC rapidamente colocou a almofada no lugar e sumiu pro banheiro. Nós caímos na risada e "Apanha a almofada!" virou um bordão que dura até hoje - mais de dez anos depois.
          OBS: Vocês podem estar se perguntando: O quê que o PC tem a ver com Wilson Baptista? Bom, PC foi o primeiro pesquisador a levantar uma musicografia de Wilson, publicada como apêndice do livro de Bruno Ferreira Gomes na década de 80. Nessa época, gravou uma série de fitas-cassete só com músicas do mestre. Dizem que essas fitas circularam pelo Rio entre os amigos de PC, depois entre os amigos dos amigos, semeando amores pela obra de Wilson. Uma das pessoas "contaminadas" pelas fitas de PC teria sido Cristina Buarque. Não é preciso dizer mais nada...