quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A incrível bagagem do mestre do samba

          “Escolha muito bem quem você quer biografar”, me disse uma vez Carlos Didier, bi(ou seria tri?)ógrafo de ninguém menos que Noel Rosa, Orestes Barbosa e Antônio Nássara. “Você vai conviver com essa pessoa por anos a fio, vai seguir suas pegadas e se tornar amigo dos amigos dela.” Mesmo que o biografado já seja falecido e não esteja na sua frente para narrar suas aventuras em primeira pessoa. Carlos tem razão. A simbiose entre biógrafo e biografado ganha estranhos contornos ao longo do processo de pesquisa e escrita do livro. É uma ligação para a vida toda. E é bom estar preparado para isso.


          Muitas vezes, entre um ou outro compromisso no centro do Rio (habitat do meu biografado, o compositor Wilson Baptista), tenho impulsos de entrar num determinado sebo. “Entraí”, é como se soprassem no meu ouvido. E dou de cara com um livro que há muito procurava, fonte de pesquisa raríssima para a biografia. Passando pelas revistas antigas do Seu Coutinho na Rua Pedro Lessa, ao lado da Biblioteca Nacional, o impulso de parar para abrir uma determinada “revista de modinhas” que pareceu piscar o olho tem sua recompensa. É mais uma letra de música inédita do mestre do samba. Conversando com fulano, me ocorre perguntar sobre o paradeiro de alguém que preciso entrevistar, impossível de ser localizado. Fulano e esse alguém impossível são de planetas diferentes, mas descubro que, coincidentemente, se conhecem. Bingo! Vílson, o filho do biografado, ao saber dessas histórias, ria e dizia: “É o velho soprando essas coisas lá de cima.”
          Minha história com Wilson Baptista começou no início do século XXI, quando quis saber mais sobre ele e não consegui. As fontes disponíveis na época, em sebos, eram uma monografia fininha editada pela Funarte, um “Perfis do Rio” e alguns fascículos antigos de banca de jornal. Me perguntei por que Wilson (que Paulinho da Viola disse, num especial da Globo da década de 1970, ser o “maior sambista brasileiro de todos os tempos”) não tinha sua trajetória contada com a profundidade que eu desejava, como admirador seu. Em vez de ficar na vontade, pus mãos à obra. Enquanto ainda houvesse boas fontes diretas. E mergulhei no projeto de escrever sua biografia.

Julio Augusto, da Zucca, eu, os netos de Wilson Baptista, Grazielle e Victor Hugo,
e a mãe dos meninos, Regina, em Inhaúma

          A obra de Wilson é subdimensionada por razões que não cabem aqui. A principal delas é que seu pior inimigo era ele mesmo. Hedonista (“Meu mundo é hoje, não existe amanhã para mim”), gastador, desorganizado, Wilson não tinha temperamento para “batalhar espaço na mídia” e reafirmar seu nome diariamente num mercado musical cada vez mais hiper e menos secos e molhados. Quando faleceu em 1968, aos 55 anos, deixou uma incrível “bagagem” (como gostava de dizer) de cerca de 600 músicas, dezenas delas sucessos, mas seus herdeiros nunca puderam desfrutar da obra do pai, tamanho o abandono.
          Para se ter uma idéia da confusão, nenhuma das listagens oficiais da obra de Wilson batem entre si. A do ECAD (principal órgão de arrecadação do país) não bate com a da UBC (sociedade de compositores da qual Wilson foi um dos fundadores). Nenhuma das duas bate com o catálogo de discos de 78 rotações editado pela Funarte, que compreende a fase áurea do autor, quando ele foi gravado por todos os cantores de seu tempo. Pior: nenhuma bate com a realidade. Nos últimos anos, fui faxinando esse terreno, perturbei editoras musicais, fucei bibliotecas e acervos, garimpei pepitas. Cheguei a uma listagem consolidada de 531 títulos, mais do que o triplo das listagens oficiais. E não paro de encontrar músicas inéditas por aí, em histórias que deixariam Indiana Jones com inveja. É quase uma centena de inéditas até agora. Também tenho descoberto, em entrevistas com parceiros de Wilson, muitas músicas em que ele vendeu sua parte da parceria, deixando de constar como autor ao ceder lugar para o comprador. Mas o fato é que Wilson Baptista reaparece como o mais produtivo compositor popular de sua geração, um espanto em se tratando de um sujeito que os próprios amigos diziam nunca ter trabalhado na vida, e até hoje reduzido ao estereótipo de “malandro” ou “vilão da Polêmica com Noel Rosa”.

Claudia Ventura, Grazielle, eu e Victor Hugo durante a temporada de 
"O samba carioca de Wilson Baptista", no Café Pequeno do Leblon

Reprodução da foto na coluna Gente Boa, onde Joaquim Ferreira dos Santos classifica 
o espetáculo como um dos melhores em cartaz na cidade. Ê alegria!

          Organizar essa “herança” musical, na trilha de recolocar Wilson Baptista no lugar de destaque que, acredito, ele merece, não tem nada de missionário. Sou pago por isso numa moeda transcendente que não tem preço. Mexer nessa matéria prima tem sido uma honra e uma escola para mim, que sou músico e compositor. Ser recebido como um velho amigo nas casas de seus amigos e admiradores, figuras que não me receberiam não fosse eu o “garoto do Wilson”, também é uma satisfação. Conhecer e papear com Dorival Caymmi, Dercy Gonçalves e a Cecy do Noel, a Dama do Cabaré, que muitos acreditavam falecida há tempos e encontrei vivinha da silva em Irajá, foi incrível. Mais de cem entrevistas realizadas. Um túnel do tempo guiado pelas mãos de Wilson Baptista.
          Ao conseguir um patrocínio da Prefeitura do Rio para realizar um espetáculo sobre o Wilson, “O samba carioca de Wilson Baptista”, fomos, eu e o produtor Julio Augusto, da Zucca, levar um cheque de pagamento aos netos do compositor, Grazielle e Victor Hugo, numa comunidade em Inhaúma, cercada de barricadas do tráfico. Me senti como um intermediário entre Wilson e os seus, e imaginei o orgulho dele sabendo que sua “bagagem”, mais de quarenta anos depois de sua morte, fez a alegria dos garotos naquele dia. 

2 comentários:

  1. Maravilha...meus olhos encheram de lágrimas de alegria com seus texto.

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  2. Brilhante seu trabalho. Wilson Baptista, com certeza, lá do céu, estará zelando por você estar fazendo um trabalho para que a nova geração conheça o seu grande valor. Ele foi um gênio do samba.Parabéns.
    Waldemir Pessoa.

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